quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Pessoas Invisíveis

(por Luiz Henrique Prieto)


Rio de Janeiro, Julho de 1978: Nasce Sandro do Nascimento, vulgo “Mancha”.

Belo Horizonte, Junho de 1973: Nasce Henrique Silva, vulgo “Duca”.

O que têm em comum esses dois personagens tão distintos, nascidos em cidades diferentes?

Ambos tornaram-se, em algum momento da vida, “Pessoas Invisíveis”!

Mancha ganhou notoriedade ao seqüestrar, em junho de 1990, um ônibus da linha 174, no Rio de Janeiro, quando manteve várias pessoas como reféns.

Recentemente, uma emissora de televisão reprisou “Última Parada 174”, filme de Bruno Barreto, onde é retratada de maneira poética, toda a trajetória de Sandro do Nascimento, o “Mancha”, da infância ao fatídico desfecho, quando morreu asfixiado por policiais, após ter tentado descer do ônibus com uma refém.

O que o filme não mostra, porém, são os bastidores da história de Mancha, as lacunas que não foram preenchidas e a mensagem de caráter social implícita nas entrelinhas.

Deixando de lado a parte artística de “Última Parada 174”, episódio que foi esmiuçado por toda a sorte de especialistas, vamos ater-nos à questão social implícita.

Em meados de 2006, Duca fazia a entrega de uma revista em quadrinhos, de caráter educativo, em um cruzamento de Belo Horizonte.

Ao aproximar-se dos veículos, sorridente, começou a perceber que não era bem quisto por ali, embora estivesse bem vestido, uniformizado e tratando as pessoas com um gentil “Bom Dia!”, seguido de um sorriso cordial.
Alguns motoristas simplesmente erguiam a mão espalmada, em sinal negativo, dizendo “Não quero comprar, obrigado!”.
Outros se limitavam a acionar o vidro automático, que se fechava na cara do gentil panfleteiro. Contudo, a grande maioria, de dentro de seus veículos possantes, vidros escuros e ar condicionado, sequer olhavam para o lado, atendendo aos insistentes apelos de Duca.

Nascia ali, para Duca, o conceito de “invisibilidade social”.

Naquele dia, Duca foi prá casa, decepcionado!
Distribuíra tantos sorrisos, tantas gentilezas, debaixo de um sol forte, horas em pé, tentando trazer uma mensagem de caráter educativo, que beneficiaria àqueles motoristas, e sequer fora notado por muitos!

Decidiu transformar aquela experiência negativa em algo verdadeiramente positivo.

Passou a cumprimentar, diariamente, todas as “pessoas invisíveis” que encontrava pelo caminho.
E observava, no olhar e nas reações de cada uma delas, a felicidade em saber que alguém as havia notado!

Duca trabalhou durante 13 anos como Orientador Social de adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas, medidas estas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
Trabalho voluntário, sem qualquer remuneração.

Percebeu, ao longo deste período, que pouquíssimas pessoas importavam-se realmente em reintegrar um “jovem delinqüente” à Sociedade.

O Programa Sócio-Educativo consiste em dois momentos, ou módulos.

No primeiro módulo, os adolescentes são encaminhados pelo Juiz de Direito, através de Entidades de Assistência Social, para o cumprimento da respectiva medida sócio-educativa.

Na sua grande maioria, adolescentes oriundos de comunidades carentes, famílias destruídas, ou ainda, vítimas do abando e da violência.

Os jovens, com autoestima em baixa, são submetidos a aulas de artes circenses, jogos teatrais, apoio psicológico e todas as ferramentas disponíveis que permitam o resgate da dignidade.
Trabalham em grupo, com um número considerável de adolescentes que compartilham as mesmas dores, os mesmos sofrimentos, como se todos fossem parte de uma grande família.

No segundo módulo, os adolescentes são preparados para o mercado de trabalho, atuando como aprendizes, office-boys, office-girls, auxiliares de secretárias e por aí vai.
Neste módulo, ocorre a desfragmentação da “grande família”!

Nesta etapa, os jovens misturam-se às pessoas ditas “normais”, sem delitos, sem “ficha suja”.

O comportamento inicial dos adolescentes limita-se a andar de cabeça baixa, falar pouco, criando um ser introspectivo.

A tarefa de “puxar a língua” desses jovens cabe não apenas ao Orientador Social, mas a todos ali envolvidos.

Contudo, a sociedade, ali representada pelos funcionários, enxerga o adolescente como um “pequeno marginal, sem recuperação”, o que por si só acaba de vez com a autoestima do jovem.

Em algumas gerências (locais para os quais os adolescentes são encaminhados, após concluírem o primeiro módulo), são esquecidos como um objeto qualquer!
Geralmente, são colocados numa mesa à parte, sem acesso a telefone ou computador, isolados do convívio como os demais funcionários.
A esses jovens, são atribuídas tarefas de pouquíssima ou quase nenhuma importância: buscar água, trocar a garrafa de café, carregar móveis e caixas e por aí vai.

São tratados como “Coisinha”, “o Boy”, “a Girl”, “os meninos da AMAS”.

E isolam-se cada vez mais!

Mesmo antes de passar pela experiência negativa no sinal, Duca procurou despertar nestes jovens o interesse pela re-inclusão social. Já que não dava prá ser de um jeito, seria de outro.
Começou a inserir os adolescentes nos eventos promovidos pelo setor de trabalho, indo desde a apresentação formal dos jovens recém-chegados à participação em festas e eventos promovidos pelos funcionários.
Apresentava os jovens para a equipe, fazendo questão de que cada um olhasse os jovens nos olhos e os chamassem pelo nome, frisando: “Estes são Fulano e Sicrano, nossos novos colaboradores!”.

A mudança era quase instantânea!
Via-se no olhar dos outrora “Zé Ninguém”, um brilho de esperança!

E Duca começou a tratá-los como iguais, cumprindo as mesmas tarefas, ensinando, aprendendo, compartilhando experiências positivas e negativas, conversando sério, contando piadas, ouvindo opiniões, interagindo com os adolescentes.

Inúmeras vezes sentou à mesa com o grupo de jovens invisíveis para almoçar, partilhar histórias e casos.
Com essas atitudes, ganhou o respeito e a admiração dos jovens!

Mas, onde entra o “Mancha” nessa história?

O que os filmes não contam, mas vários artigos, incluindo o documentário “Ônibus 174”, do diretor José Padilha, é que Mancha assistiu ao assassinato da mãe, quando ainda era criança.
Morta a facadas.
Degolada.
Ali, bem na sua frente.
Perdia-se a referência materna.

Após ir morar com a tia e sentir-se um estorvo, Mancha resolveu ganhar as ruas, rompendo qualquer vínculo (se é que um dia existiu) com a sociedade.

Passou a viver de déu em déu, sobrevivendo de esmolas.

Contudo, ganhar algo na cidade grande era deveras complicado.

Inúmeras pessoas passavam por Mancha diariamente, e sequer lhe dirigiam um olhar, ainda que de reprovação!

Mancha era invisível!

Mesmo pedindo esmolas nos sinais, fazendo malabarismos, não era notado!

Até que, num ato desesperado, apossou-se de um caco de vidro e ameaçou uma motorista.

Instantaneamente, o até então “ser invisível”, ganhou corpo e materialidade.

Como se uma assombração se materializasse ali, na frente da madame!

A já conturbada cabeça de Mancha assimilou de imediato a situação: “Ora, então se eu estiver armado, passam a me enxergar?”.

Deu-se assim a sua inserção na modalidade de assalto à mão armada.

Sem arma, era apenas um estorvo para a sociedade, um saco de lixo abandonado numa porta qualquer.

Não merecia sequer o desprezo das pessoas.

Armado, representava o poder absoluto, mediante o pavor das vítimas. Ganhara respeito.
E "tocou o terror"!

Assim como os jovens “Falcões do Tráfico”!
Jovens que entram para o crime com a finalidade de serem enxergados e respeitados por todos!

Embora muitos vejam Mancha como um “psicopata” (tanto é que a população queria o seu linchamento no desfecho do sequestro), cabem aqui algumas informações importantíssimas, omitidas no filme, e deixadas nas entrelinhas do documentário:

- Mancha repetiu, inúmeras vezes, tanto para a mãe adotiva como para a “tia da ONG”, que um dia ficaria famoso e apareceria na televisão;

- Seqüestrou o ônibus com um revólver calibre 38 enferrujado, cinco ou seis balas no tambor, o que nos remete à tese que o crime ocorreu por mero acaso, sem planejamento;

- Se realmente quisesse “matar geral”, teria feito, pois oportunidades não lhe faltaram;

- O documentário de Padilha retrata os momentos em que Mancha conversava com os reféns, contando sua triste história, chegando inclusive a chorar por várias vezes.

Excluindo a sede de sangue da população e o sensacionalismo explorado pela mídia, temos a resposta que levou o sequestro ao final trágico: Tudo o que Mancha desejava era “ficar famoso e aparecer na televisão”.

Não pelo crime em si.

Mas para deixar de ser invisível!

Para que as pessoas que cruzassem o seu caminho, o olhasse nos olhos, com dignidade.

Decerto, se Mancha tivesse a oportunidade de materializar-se para a sociedade, não como um marginal, talvez como um ser humano miserável e esquecido, não ficaria tão famoso, tampouco apareceria na TV, mas exibiria um belo sorriso.
Ted Willians, o "mendigo-locutor", é a prova viva mais recente da transformação do invisível em materialização.
Quantas centenas de milhares de pessoas passaram por aquele trecho, sem enxergar o pobre moribundo, sequer percebendo que naquele trecho havia um homem segurando uma placa improvisada de papelão?
Na certa, não enxergavam porque Ted já fazia parte da paisagem.
Contudo, bastou que um jornalista, olhos treinados (ou quem sabe, com
visão de raio-x), enxergou Ted Willians.
Tirou o mendigo da invisibilidade, mostrando-o a milhares de pessoas.
Hoje, o até então "invisível para a sociedade, transformou-se em celebridade, com direito a inúmeras propostas de emprego, aparições na televisão, convites para talk-shows.

As histórias de Duca e Mancha se cruzam exatamente no instante em que se tornaram invisíveis para a sociedade.

Decidiram, cada qual ao seu modo, sair da invisibilidade.

Recentemente, Duca incorporou-se a uma ONG, cuja atividade é distribuir lanches para os moradores de rua, nas noites de Belo Horizonte.

A primeira experiência foi impactante: a coordenadora do grupo, à medida que iam caminhando pelas ruas, explicando as dificuldades que encontravam no trabalho voluntário, apontava aqui e acolá. “Ali tem um!”, dizia apontando para um canto qualquer.

Duca não conseguia enxergar. “Ali onde?”, perguntava.

Somente quando chegavam perto é que ele conseguia enxergar o “invisível”.

Moradores de rua, mendigos, lixeiros, catadores de papel, viciados, toda a sorte de pessoas “esquecidas” pela sociedade.

Gente que faz parte da paisagem de qualquer cidade, mas que a maioria das pessoas nem nota!

Em cada lanche entregue, um olhar de gratidão!

Muitos nem queriam o lanche, mas apenas bater um bom papo!

Faziam questão de dizer o nome completo, apertar a mão dos seus benfeitores e agradecer, visivelmente emocionados.

Quando disse que Duca passou a cumprimentar as “pessoas invisíveis” que encontrava pelo caminho, não me referi apenas aos moradores de rua, mendigos ou viciados.

Motoristas de ônibus, trocadores, porteiros, faxineiras, a “tia do café”, o caixa do supermercado e toda a sorte de pessoas que fazem trabalhos humildes, porém importantes.

Curioso ver como uma faxineira reage, ao ser tocada no ombro e ouvir um “Bom Dia”, dito de coração.
O susto é enorme!
Infelizmente, há uma parcela considerável da população que só se materializa em períodos elitorais, ou ainda, em grandes tragédias.
Por acaso você já conhecia a Vila Cruzeiro, ou o Complexo do Alemão?
Já havia percebido quantas centenas de famílias moram em encostas, nas chamadas áreas de risco?
Pessoas invisíveis, que são mostradas ao mundo somente para sensibilizar os eleitores deste ou daquele político, mas que desaparecem tão logo o candidato se elege!

Troque o filtro do seu olhar e comece a procurar por aí as pessoas invisíveis!

Não precisa ir longe!

Vai ver, dentro da sua própria casa tem alguém que você não enxerga: seus filhos, a esposa, seus pais.
Vai ver, nem você mesmo se enxerga!

E da próxima vez que cruzar com Mancha ou Duca em um sinal de trânsito, olhe em sua direção.

Diga um “olá”, acene com a cabeça!

Não precisa abaixar o vidro!

Basta apenas enxergá-los!
Antes que, tal qual uma bomba-relógio, explodam e atinjam os seus olhos!
"A miséria e a dor do outro passaram a fazer parte da paisagem natural: todos somos capazes de vê-las, mas prefere-se não enxegá-las".
"Assim, o miserável e o seu sofrimento tornam-se invisíveis e, uma vez invisível, o problema torna-se inexistente".
"Provocar o medo é uma maneira de recuperar sua visibilidade, sua autoestima, sua existência".
(As três últimas frases são de autoria do Professor Hélcio Melo, retiradas do vídeo "Invisibilidade Social - http://www.youtube.com/)
Referências:
"Última Parada 174" - Bruno Barreto.
"Ônibus 174" - José Padilha






5 comentários:

  1. Obrigada pela indicação da leitura "Pessoas Invisíveis", via twitter. Além de ter revelado dados da história do Sandro que desconhecia, o assunto abordado vem ao encontro de algumas constatações que, também, teço em meus escritos.

    Reflexivo e tocante, o texto retoma o assunto-cultura dos tempos modernos que é calcado no individualismo... Perdemos a noção da consciência coletiva e, a meu ver, estamos fadados ao fracasso e a destruição - em várias dimensões - caso não haja mudança na nossa postura.

    Ser invisível dói na alma!
    Grata e parabéns pela bela análise!

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  2. Estimado Henrique,

    Como é difícil para grande parcela de nossa sociedade enxergar essa parte excluída. Como seria mais simples nossas vidas, nossa convivência enquanto humanos se fossemos mais gentis, se pudessemos nos enxergar no mais profundo de nossas almas e, posteriormente, ver o próximo á nossa semelhança.
    Continuo na esperança de construirmos uma sociedade melhor e mais humana. Continuemos empenhados em fazer nossa parte, mesmo que nos sintamos como o beija-flor tentando apagar o fogo da floresta levando agua em seu bico, devemos acreditar que viver assim vale a pena...

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  3. Excelente para reflexionar en el mundo entero....

    Ricardo de Argentina

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  4. Excelente análise. No entanto, faltou dizer que
    "O que o filme não mostra, porém, são os bastidores da história de Mancha, as lacunas que não foram preenchidas e a mensagem de caráter social implícita nas entrelinhas." é uma escolha do diretor. Em nada isso diminiu o mérito do filme, o que a conjunção "porém",acima sugere.
    Há opções e opções e opções na criação de qualquer obra de arte.
    Há que destacar a excelência da obra, mesmo quando essa opção não se enquadra na ideologia do analista.
    De resto, o texto é mesmo muito claro e didático no que diz respeito à questão da invisibilidade, tratada e format tão hermética e pedante por boa parte dos sociólogos e antropólogos de plantão.
    Esse é claro, o exemplo do filme é perfeito. Só faltaram as ressalvas a que me refiro, na minha opinião, obviamente.
    Parabéns. Retuitando o link.

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