quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Amor, Sarjeta e Dignidade

Trecho extraído do Show "Eu e o Tempo", gravado no Canecão, RJ, em janeiro de 2009


"Uma das histórias mais bonitas do meu pai, aconteceu numa tarde chuvosa.

Nós estávamos em casa, quando alguém veio nos avisar:

'Dona Ana, a senhora vai ter que buscar o Seu Natinho, porque ele tá bêbado demais, ele não consegue voltar pra casa. Tá caído lá na padaria, lá na padaria, lá na frente, lá no centro'.

Eu me recordo que eu era muito pequenininho.

Imediatamente, eu já me levantei, pronto para resolver a situação, sabe?

Fui eu, minha mãe e um irmão meu, mais velho.

E eu me recordo, gente, que quando nós chegamos lá, meu pai estava caído, na sarjeta mesmo.

A bicicletinha dele, ele era pedreiro, né ? Tava caída assim, de lado, e ele na sarjeta.

Tinha chovido, e aquele barro que forma quando você tem uma enxurrada, ele ali, misturado.

Eu me lembro que o primeiro sentimento que me veio, foi de vergonha.

Eu tinha medo que algum colega meu pudesse passar, pudesse ver meu pai naquela situação.

Eu me lembro que nós tiramos ele ali, com pressa, muita pressa.

Levamos ele pra casa, demos um banho nele, pra que ele pudesse voltar a ser meu pai.

Meu pai foi um homem muito trabalhador, muito justo, muito honesto.

Mas viveu, num determinado momento da vida, o problema do álcool.

Superou, graças a Deus, morreu sem o problema.

Mas aquela tarde fica registrada na minha memória, de um jeito muito intenso, porque ela representa pra mim uma das aulas de teologia que a faculdade não me deu.

É bonito você reconhecer o amor que você tem por uma pessoa, no momento em que ela está no podium.

É fácil amar uma pessoa no momento da vitória, no momento em que há razões para ser amada.

Mas no momento em que o outro faz tudo errado e mesmo assim o seu coração se mobiliza, para continuar elegendo como seu...

Eu aprendi que Deus é assim.

Que mesmo no momento da nossa sarjeta, a predileção dele por nós não passa, não termina.

Porque o amor que Deus tem por nós, não passa pela lógica da utilidade, do mérito.

Passa pela lógica do significado.

Não é mérito, não precisa ter.

Depois de tanto tempo vivido, eu identifico que o sentimento que me ocorre, que me ocorreu naquele momento, não era de vergonha, era de indignação!

Porque a indignação é você ver a pessoa certa, no lugar errado.

E eu como padre, hoje, compreendo que o essencial da minha vida, da minha evangelização, consiste, justamente, em descobrir e ficar indignado com as realidades que eu encontro quando vejo pessoas certas, nas situações erradas.

E, para mim, o processo religioso vale, na vida, justamente para isso: Pra nos retirar da sarjeta, pra lavar a nossa alma e nos devolver a dignidade perdida."


Padre Fábio de Melo

2 comentários:

  1. Musica linda demais, cada vez que ouço as musicas deste padre mais gosto de cada uma, mas esta me toca de uma forma que nem sei explicar...

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