quinta-feira, 25 de agosto de 2011

DONA JUSTA - AS MAZELAS DO JUDICIÁRIO

(by Luiz Henrique Prieto)


A emboscada sofrida pela Juíza Patrícia Acioli, covardemente assassinada, reacende uma discussão antiga, que vira e mexe, vem à tona, graças ao sensacionalismo, mas que, logo, logo, vai caindo no esquecimento, na mesma medida em que o corpo vai se decompondo.

Até que ponto estamos seguros?

Se uma Juíza de Direito, que no imaginário popular representa o supra-sumo do Poder Judiciário, não tem garantias de vida para exercer com isenção, coragem e severidade a sua função, o que dizer de nós, pobres mortais, sem eira nem beira, deixados à mercê dos malfeitores?

Então, alguém que se dispõe a combater o crime, de cara limpa, sem efeitos especiais, cinto de utilidades ou super poderes, deve abandonar o seu ideal de um mundo melhor, sem conflitos, sem deturpação da paz, preservando a dignidade humana, por temer que os responsáveis pelo caos atentem contra a sua vida?

Recentemente, salvo engano, o Fantástico exibiu a matéria intitulada “Manual de Sobrevivência”, com dicas para o cidadão se proteger de furtos, balas perdidas, assaltos em semáforos e por aí vai.

Bem profetizou Humberto Gessinger (Engenheiros do Havaí): “Nas grandes cidades, no pequeno dia a dia, o medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia. Então, erguemos muros, que nos dão a garantia, de que morreremos cheios, de uma vida tão vazia”.

Viramos reféns dos marginais!

Encarcerados, enjaulados, prisioneiros em nossos lares, supostos portos-seguros.

Os criminosos não temem, e sequer, respeitam as autoridades, estejam estas onde estiverem, em qualquer esfera do poder!

Vivemos num Sistema Judiciário falido, onde Desembargadores, aninhados em suntuosos gabinetes de mármore, despacham inúmeras decisões.
Na outra ponta, Delegados em condições super precárias de trabalho, sem equipamentos, sem pessoal suficiente, sem a menor condição de manter a Ordem e a Paz.
No meio do lamaçal, investigadores, Policiais Militares, Agentes Penitenciários, Comissários de Menores e toda a sorte de colaboradores do Sistema Judiciário.

Retratando a fragilidade do Judiciário, relato a minha experiência, enquanto Comissário do Juizado da Infância e da Juventude.
São inúmeras as situações, mas relatarei apenas quatro.
Gastaria pelo menos umas dez páginas para descrever, não só os casos, como as condições precárias de trabalho.

No primeiro caso, um adolescente suspeito de ter abusado sexualmente de uma criança, foi jurado de morte pelo tio, traficante.
Situação complicadíssima e bastante delicada. Por um lado, o asco pela atitude do adolescente. Por outro, a necessidade de proteger a vida do infeliz malfeitor.
É o nosso trabalho, fazer o quê?
Em nossas mãos, letras frias, imperativas: CUMPRA-SE!
Ordem dada, é ordem cumprida, parceiro!
Não cabia a nós, Comissários, decidir o que era certo e o que era errado.
O Homem da Capa Preta mandou, a gente faz!
Só que, nesse caso, a nossa missão era levar o adolescente de volta prá casa, próximo à residência do tio traficante, sem escolta policial, planejamento estratégico ou coisa parecida.
Literalmente, entregar o maldito cordeiro para o lobo sanguinário!
Infelizmente, um dos pontos fracos do Judiciário: a falta de um Serviço de Inteligência!
Não sei como terminou essa história, pois fui com outra Equipe fazer a fiscalização de rotina.

No segundo caso, recebi a determinação de fazer o abrigamento de uma adolescente, aparentando ter entre 13 e 14 anos.
Como de praxe, não perguntei à adolescente do que se tratava. Adotei essa prática quando, ao questionar uma criança sobre o motivo pelo qual havia sido encaminhada ao Juizado, recebi a inocente resposta: “Meu pai me estuprou”.
Meu mundo caiu!
De posse do Mandado de Abrigamento, fomos eu e dois motoristas, cumprir a tal Ordem Judicial. Sei que o bairro ficava lá nos cafundós do Judas! Sequer existia a rua no mapa!
Chegando ao abrigo, feitas as apresentações formais, entregamos a adolescente à pessoa responsável por sua guarda a partir de então. Retornando à viatura, percebi que os motoristas estavam pálidos e MUITO nervosos. Nem me deram tempo de perguntar do que se tratava e foram logo dizendo que a adolescente estava sob proteção porque fora jurada de morte.
O namorado traficante, recém preso, estava em guerra numa disputa por pontos de distribuição de drogas e o rival, agora dono do pedaço, pediu a cabeça da adolescente.
Quase tive um treco quando soube o valor da “carga” que havíamos transportado!
Sem orientação, sem escolta policial, sem proteção alguma, a não ser a Divina!
Qualquer vagabundo nessa cidade sabe muito bem para onde são encaminhados os adolescentes!
Logo, corremos um risco de vida imenso, pois a qualquer momento, uma emboscada poderia ter sido realizada na porta do Juizado, ou durante o trajeto, o que não seria nada difícil, pois passamos por vários locais ermos.

Terceiro caso: Transferência de Tutela. Retirar uma criança internada há 3 meses num hospital e levá-la para um abrigo.
Até aí, feijão com arroz.
Só que, chegando ao hospital, fomos informados que a mãe da menina, viciada em crack, havia invadido o local uma vez e tentou uma segunda, com o objetivo de resgatar a criança.
Não foi presa, era vista dia e noite rondando o hospital e, numa das últimas vezes em que apareceu, estava em companhia de um namorado, suposto traficante.
Uma beleza, né?
Retirar uma criança de um hospital público, tendo como escolta apenas Guardas Municipais desarmados e uma distância, ao ar livre, de uns 100 metros entre a portaria do hospital e a viatura.
Prá quem tá de fora, 100 metros equivalem a uns...100 passos?
Mas, prá quem tá no olho do furacão, alvo fácil, são uns 100 km, parceiro!
Aliás, eu disse escolta da Guarda Municipal?
Qual o quê !!!
Os camaradinhas nos levaram somente até a portaria e, de lá até a viatura, “é com vocês, parceiros!”
Pode parecer brincadeira, mas nessas horas é que a gente vê a morte de perto.
Um entra e sai de gente, você não sabe quem é quem, o perigo rondando, o cheiro da morte invadindo as narinas.
Prá melhorar o nosso quadro, viatura caracterizada do Tribunal de Justiça.
Não precisa ser um gênio para saber o resultado da operação “Juizado de Menores + Viatura” = Retirada de criança ou adolescente do hospital!
Com uma mãe ensandecida, acompanhada de um namorado criminoso à espreita, prontos para darem o bote!
Sem escolta policial, sem apoio, sem proteção.

Às vezes, naquela frase fria e imperativa “CUMPRA-SE”, juro que lia “DANE-SE”.

Quarto e último caso, para encerrar, talvez o que tenha metido mais medo no “Herói” aqui: recebi no meu plantão, um pai e um adolescente, vindos do interior, procurando proteção do Juizado.
Acolhi a dupla amedrontada e procurei me interar sobre o assunto.
Meu filho foi ameaçado de morte. Fugimos às pressas, foi só o tempo de colocar uma muda de roupa na mala. Passamos por duas cidades, mas ainda assim, os bandidos foram atrás. Aí fugimos prá BH, mas não podemos ficar zanzando prá lá e prá cá, porque temos medo de encontrar com um deles por aqui. Tem um lugar seguro prá gente ficar?”, disse o pai.
Bom, não basta simplesmente chegar no Juizado, contar uma historinha e conseguir uma vaga num abrigo. O adolescente que tem residência fixa e a proteção dos pais, não necessita de abrigamento. Mesmo porque, abrigo não é moradia, é apenas uma espécie de “hospedagem provisória”, até que o caso seja julgado. Pergunta daqui, pergunta dali, aos poucos fui ganhando a confiança do pai, que entregou um pouquinho mais da história. Como o adolescente estava ensimesmado (nuossaaaaa! Enfim consegui usar esse termo!), tentei puxar assunto.
Ô arrependimento, viu?
Um calafrio subiu pela minha espinha, as pernas tremeram, as mãos suaram, a boca secou...
O queixo só não caiu por que estava apoiado na mão!
O adolescente relatou, em detalhes, como assassinou friamente a facadas, o traficante que estava lhe cobrando uma dívida. Se não me falha a memória (naquela hora, o cérebro congelou), o adolescente começou no tradicional caminho que todo pobre drogado faz: é apresentado às drogas, torna-se um viciado, não tem como bancar o vício, trabalha pro tráfico.
Só que, nessa ai, “cheirou” uma carga de cocaína que havia pego prá vender.
Traficante não perdoa esse tipo de vacilo!
E cobra a dívida com a vida do infeliz!
O bandido só não esperava que o suposto “bundão” tivesse disposição para meter-lhe três facadas no bucho!
O que me deixou paralisado não foram apenas a riqueza de detalhes e a frieza com as quais o adolescente contava a sua pequena “aventura”.
O que, de fato, me fez querer levantar dali e sair correndo, foi a empolgação, o sangue que começava a tomar posse dos olhos daquele jovem matador.
Foi a primeira vez, em toda a minha vida, que estava cara a cara com um assassino!
Pior: um adolescente que matou a sangue frio!
Juro que pela minha cabeça passaram inúmeras situações!
Eu não podia sair da sala, pois pai e filho obstruíram a passagem com as cadeiras. Não dava prá usar o telefone, pois o nervosismo não me permitia tomar qualquer atitude. Prá piorar, já estava vendo a hora em que o adolescente, ensandecido, abriria a bolsa e tiraria a arma do crime, para me mostrar como tudo aconteceu!
O resto dessa história, deixo em off, por questões éticas.

A objetivo desses relatos não é a de abrir a “Caixa de Pandora” do Judiciário, denunciando falhas.

A real intenção é exatamente chamar a atenção da Sociedade, dos Governantes e das Autoridades para os perigos que cidadãos como a Meritíssima Juíza Patrícia Acioli, assim como eu, estão expostos, no estrito cumprimento do dever.

A sensação que tenho é que somos um nada.

Sem reconhecimento.

Sem proteção.

Jogados.

Quem bate, esquece. Quem apanha, jamais!

Meritíssima, descanse em paz!

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